Centro de Exposições de Odivelas - Jul./Set. 2016

(PT) São 20h e algumas raparigas ensaiam poses em cima de uma passerelle provisoriamente montada no parque de estacionamento do Euromarché. São candidatas a Miss Famões 2015. Uma delas dirige-se a um casal idoso sentado na plateia de cadeiras de plástico, sorri, troca umas palavras breves e volta a correr para os bastidores, passando por várias “equipas” que ultimam os preparativos do evento programado para as 21h. Música de dança ecoa no parque de estacionamento e aquece os ouvidos de todos os presentes, sujeitos a um vento demasiado fresco para um início de noite de final de Primavera. Os vários e fulcrais patrocinadores do evento desdobram-se em montagens de inúmeras barraquinhas e cartazes por todo o recinto. Alguém me pergunta “Viu o Eduardo?”. O Eduardo Sousa é o organizador e a alma do Miss Concelho de Odivelas desde a sua origem nos anos 90, que tem como eliminatórias as respectivas freguesias constituintes. Para além desta primeira, em Famões, há também na Pontinha, em Caneças, na Ramada, em Olival Basto, na Póvoa de Santo Adrião e na freguesia de Odivelas.

São 21h e o Eduardo, juntamente com outras pessoas da organização, percorre o recinto em sprints entre os inúmeros focos de luz colocados ao longo do “palco”. Problemas eléctricos fazem o quadro disparar e deixam o local sem luz e som. A plateia entretanto encheu. Curiosos acabados de sair com as suas compras, locais em passeio pós jantar mas, especialmente, familiares e amigos rodeiam a passerelle. E, finalmente, pelas 22h, a apresentadora anuncia que as Misses vêm aí. Será assim em todas as eliminatórias. as Misses fazem 3 desfiles. Casual (com apresentação do nome e idade), fato de banho (com os dados métricos dos seus corpos) e vestido de noite (com referência à viagem de sonho e prato favorito de cada uma das concorrentes). Nos Intervalos, variadíssimos grupos locais enchem o palco de dança, música e até artes marciais, enquanto todos esperam pelo próximo desfile. Com olhar mais atento, o júri, diga-se numeroso, observava todas as candidatas com umas fichas onde debitavam as suas notas. Entre o júri notavam-se políticos locais, Misses de 2014, representantes de patrocinadores e VIPs convidados.

Estas imagens são o resultado da constante observação de tudo o que envolve. Facto é que, na realidade, são mesmo as Misses as personagens principais. Tudo o que se passa à frente da passerelle e nos seus bastidores, passando pelos seus intervenientes e cenários, foi o alvo deste projecto. Contar uma história de um ambiente com contornos claramente bairristas, com as cores próprias de um subúrbio. Mas também perceber o  que leva moças de 16, 18 e até 23 anos a entrar neste concurso. Sonhos, promessas, pressões? Ao conversar com algumas delas, percebi que a maioria encarou isto como um desafio, uma aventura, uma experiêcia de vida sem mais expectativas.

Cliché? Sim. De gosto, para alguns, duvidoso? Também. Real? Como dizia a apresentadora “as nossas Misses vão-nos transportar para uma noite de beleza e glamour”. Tal como em feiras ou nas festas (nas quais algumas das eliminatórias estavam inseridas), este concurso dá a muitas pessoas um motivo para sair de casa e assistir ao vivo a uma espécie de Miss Universo de bairro.

Martin Parr disse: “Em parte, o papel da fotografia é exagerar, e esse é um aspecto que eu tento combater. Faço isso mostrando o mundo como na realidade o encontro.”
Missing Dreams é a minha viagem visual ao idiossincrático e por vezes hermético universo deste acontecimento. Este é um olhar abrangente mas focado, relegando para segundo plano a passerelle. Um trabalho documental onde desfilam não apenas as concorrentes mas também os organizadores, os apoiantes, as famílias e os espectadores; todos com os seus anseios, as suas expectativas, os seus sonhos.

Luís Carvalhal, 2016



Missing dreams ou a (des)ilusão da fotografia

Devido principalmente à sua natureza técnica, a fotografia ainda confunde muita gente. A verosimilhança é um efeito poderoso e é frequente confundir representação com representado, como se a fotografia fosse um espelho fiel da realidade e na maior parte das vezes ampliando todos os seus detalhes. Sobretudo quando se trata de trabalhos de carácter marcadamente documental como acontece com este grupo de imagens que Luís Carvalhal nos apresenta. 
A fotografia não é objectiva, como objectiva também não é a nossa interpretação da fotografia (na realidade uma interpretação segunda, uma interpretação de uma interpretação). A fotografia opera uma redução de escala, e de tonalidades sobre a realidade, retira-lhe dimensão (é plana); o fotógrafo seleciona um pequeno (ou grande) fragmento da realidade entre uma infinidade de possíveis. O movimento que anima a realidade desaparece, imobiliza-se e o único movimento agora é o nosso caminhar para o interior da imagem, o nosso tempo de leitura, o percurso que a imagem fará no tempo, transportando sempre esse tempo preciso e original que lhe permitiu acontecer. Neste sentido, a fotografia opera uma redução sobre o real, interpreta o real de acordo com as capacidades e limites técnicos do dispositivo e devolve-nos uma representação, por muito precisa que possa ser, mas sempre uma interpretação. A realidade é de outra ordem: é sempre maior, mais vasta, mais complexa, que uma fotografia. A realidade não é real; é uma rede intricada de acontecimentos (no sentido em que algo está a acontecer), acções e sensações e cuja percepção está igualmente sujeita às leis da subjetividade: o que eu vejo não é a realidade em si mas sim a percepção (uma construção) que eu tenho das coisas.
Contudo, a fotografia implica-nos; envolve-nos ao interrogar-nos os sentidos. Se em si mesma nada nos diz (como objecto é simples de descrever - uma mera superfície de inscrição) a fotografia é matéria significante pelo modo como representa e pelo modo como essa representação (toda a representação) nos interpela. Somos facilmente confundidos pelo seu poder mimético, pela sua capacidade ilusória especular que lhe reconhecemos e que está enraizada no desenvolvimento da história da representação no ocidente desde pelo menos o renascimento.  O reconhecimento deste poder fez com que, desde o início, investíssemos a fotografia de um verdadeiro poder de (re)presentação: aquilo que ela apresenta, é tão verdadeiro como aquilo de que ela é o substituto (quando na realidade, como vimos, não é mais que um mero ersatz). 
 Desde os seus primórdios, sobretudo tendo em conta as suas limitações técnicas, a fotografia sempre tentou operar um conjunto de melhoramentos não sobre a realidade, mas sobre a representação, no sentido de a tornar mais credível, mais conforme a esse regime de verdade que reclamava para si. Aparece assim, por exemplo, a imagem compósita, uma imagem que na realidade era um somatório de imagens diferentes que poderiam ter por função objectivos diferentes: representar o irrepresentável por razões técnicas, como foi o caso da paisagem (Le Gray) ou ultrapassar problemas de escala, iluminação e encenação (Robinson e Rejlander) para poder passar para a fotografia alguns dos temas caros à pintura no que aos seus modelos, temáticas e géneros diz respeito. Em todo o caso, ao espanto inicial da proeza técnica seguia-se, normalmente, uma desilusão pelo artifício da representação, um sentimento de decepção como se de uma traição ao sentido da visão se tratasse.
Se ao longo da história do medium se foram ultrapassando estas questões, na verdade a nossa relação com a fotografia, enquanto espectadores, ainda resiste em muitos meios a resolver esta contradição e tem dificuldades em ultrapassar a dicotomia representação/ representado. Contudo, do que estas fotografias nos falam, é de uma incursão fortemente visual por uma realidade, desconhecida para muitos, vivida intimamente por outros, numa construção narrativa que compete a cada um escrever de acordo com o modo como olha para o que lhe é dado a ver. A representação é sempre complicada para o representado; sobretudo quando se fala de um género de representação e de modos de representar que escapam à maioria dos espetadores comuns já que fogem aos géneros e cânones a que habitualmente as pessoas ligam estes acontecimentos. Mas, na realidade, não há nada a temer. As fotografias em nada alteram a realidade das coisas em si; apenas nos alargam os horizontes ao permitirem, na nossa liberdade, construir um novo olhar que nos modifique e amplie a percepção que temos do mundo. 

Francisco Feio, julho 2016

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